quarta-feira, 6 de maio de 2009

SINAIS

Ando pelo apartamento todo

tentando apagar os sinais

daquela que se chama Rita.

Um sutiã no quarto, sua agenda na sala.

Um Button do Garfield e o pôster do Neruda

que ela me deu.

Passo pente fino nos cômodos

E tento apagar qualquer vestígio,

Resquício e detalhe que possa me fazer relembrar.

Tento tirar da alma aquela que um dia foi minha.

Revejo cada peça, móvel, gaveta, pensamento.

Arrumo as camas, lavo o banheiro.

Arrasto tudo para fora!

Mas eu e o apartamento parecemos

Despojados de um ser, uma vontade de viver.

E a presença irrita e persiste.

Nas lágrimas que insistem em cair

E nos vários copos de uísque.

LEITURA & LITERATURA

Ao organizar minhas leituras de férias tenho sempre em mente três tipos de livros: um best seller do momento; um clássico da literatura mundial e uma biografia, ou autobiografia qualquer. Evito ler auto-ajuda, marketing, Paulo Coelho, Zibia Gasparetto e afins. O tempo que tenho para fazer leituras é muito exíguo, por isso melhor aproveitá-lo sabiamente.

Por que um best seller? Bom, às vezes as viagens tornam-se longas demais, a espera de trinta minutos por um voo transforma-se em uma, duas, três horas. Ao se deitar relaxado em uma praia o nível de abstração é maior do que o normal e tem-se a atenção e poder de concentração diminuídos. Nesses momentos deseja-se ler algo mais simples como se estivesse folheando a revista CARAS – e cá entre nós. Entre ler um best selller e folhear a revista CARAS, o que você preferiria?

Uma biografia, uma autobiografia ou um livro de memórias é um retrato de uma época, um momento histórico sob o ponto de vista de outros. É um meio de entender a formação de um país¹, uma sociedade, de um povo e auxilia a entender o mundo contemporâneo.

Em um clássico da literatura universal. Por quê? Onde você pretende chegar sem ler clássicos da literatura?

Mas livros são livros e nada mais. A vida continua com ou sem eles, e se eu puder ler pelo menos três livros nas minhas férias de verão sigo mais feliz com três livros na cabeça².

__________

1. Acredito que para se compreender a formação do Brasil é interessante ler três livros: “Chalaça” de José Guilherme Torero; “O Anjo Pornográfico” sobre a vida de Nelson Rodrigues de Ruy Castro e “Chatô” de Fernando Morais; lembrem-se biografias e afins são um retrato de um época.

2. Li num periódico que um brasileiro médio lê 1,3 livros por ano (?!). Se eu puder ler três estou acima da média, não é?




Ela grudou em mim como tatuagem.

Faz tudo que peço.

Me leva nos melhores lugares,

Me abraça forte.

Gosto dela, pode até ser amor.

ARNALDO ANTUNES "O QUE FAZ VOCÊ FELIZ"

O que faz você feliz?
A lua, a praia, o mar
Uma rua, passear
Um doce, uma dança
Um beijo ou goiabada com queijo?
Afinal, o que faz você feliz?

· Ler, ler e ler – jornais, revistas, anotações, poesia, best seller, clássicos da literatura, bula de remédio, recados, e-mails; um vício!

· Dar aulas de literatura! Encontrei meu lugar;

· Chocolate;

· Histórias em quadrinhos;

· Ouvir música – ainda sou daquele tipo que compra CDs, acho que um disco tem todo um conceito autoral, capa, ficha técnica, e, além disso, não tenho muita paciência de baixar músicas pela web;

· Comer amendoim de madrugada vendo TV;

· A Livraria Cultura do Conjunto Nacional;

· Ler os jornais de domingo, Folha, Estadão e O Globo, na cama;

· Praia – cair n água, secar no sol feito um jacaré e... cair n água, secar no sol feito um jacaré e... cair n água, secar no sol feito um jacaré e...

· Olhar as pessoas – tenho uma curiosidade me observar gente, imaginar suas vidas, criar cenários possíveis e verossímeis para a vida de outros;

· Ficar em casa de boa fazendo minhas coisinhas no silêncio, sem ninguém por perto e com a TV desligada;

· Comprar mochilas e bolsas – ainda não encontrei o modelo ideal para as minhas andanças;

· U2, Rolling Stones, The Cure, The Smiths e outras tantas bandas inglesas de rock;

· Queimar CDs de autor para poucos e bons;

· Ficar a toa numa livraria;

· Mulheres usando sandálias Havaianas – não há nada mais sexy e atraente do que uma mulher com as unhas pintadas de vermelho sangue calçando Havaianas brancas;

· ´The Great Gatsby´ de F.S. Fitzgerald; ´Brave New World´ de Aldous Huxley; ´Feliz Ano Velho´ de Marcelo Rubens Paiva; ´On The Road´ de Jack Kerouac; ´Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos´ de Rubem Fonseca e por aí vai...

· João Gilberto, Djavan, Caetano Veloso, Jorge Benjor, Gilberto Gil, Fernanda Abreu, Zeca Baleiro, Nando Reis, Lulu Santos e por aí vai...

· Ver um filme depois de ler o livro no qual ele foi baseado e vice-versa;

· Pocket books! Adoro!

· Morar perto da Avenida Paulista;

· Um abraço sincero e bem encaixado, isso vale muito mais do que um beijo na boca;

· Pegar carona com os amigos;

· Trocar a minha vida inteira por uma noite de puro prazer;

· Seriados norte-americanos, de preferência os policiais: CSI, Law & Order. Criminal Minds, Lost...

· Ir ao cinema – momento mágico!

· Tomar sorvete direto da embalagem!

· Ir domingo cedo à Avenida Paulista comprar o jornal O Globo;

· Miniaturas de super-heróis, os famosos soldadinhos ou action figures;

· Ficar de bobeira até uma ou duas da manhã em frente à TV;

· Ser organizado, mas não ser sistemático; ter planos e metas, mas não encanar se não acontecer. Minha meta é viver, apenas viver...


ARNALDO ANTUNES "O QUE FAZ VOCÊ FELIZ"


O que faz você feliz?
A lua, a praia, o mar
Uma rua, passear
Um doce, uma dança
Um beijo ou goiabada com queijo?
Afinal, o que faz você feliz?
Chocolate, paixão
Dormir cedo, acordar tarde
Arroz com feijão, matar a saudade
O aumento, a casa, o carro que você sempre quis
Ou são os sonhos que te fazem feliz?
Dormir na rede, matar a sede
Ler ou viver um romance
O que faz você feliz?
Um lápis, uma letra, uma conversa boa
Um cafuné, café com leite, rir a toa
Um pássaro, um parque, um chafariz
Ou será o choro que te faz feliz?
A pausa para pensar
Sentir o vento
Esquecer o tempo
O céu
O sol
Um som
A pessoa ou o lugar
Agora me diz o que faz você feliz?

O que faz você feliz?
aquela comida caseira,
arroz com feijão
brincar a tarde inteira
o molho do macarrão
ou é o cheiro da cebola fritando que faz você feliz?
o papo com a vizinha,
o bife, a batatinha
a goiabada com queijo
um doce ou um desejo
afinal o que faz você feliz?

O que faz você feliz?
ficar de bobeira
assaltar a geladeira
comer frango com a mão
tomar água na garrafa
passar azeite no pão
ou é namorar a noite inteira que faz você feliz?
rir e brindar a toa
um filme, uma conversa boa
fazer um dia normal virar uma noite especial
afinal, o que faz você feliz?

O que faz você feliz?
comer morango com a mão
por açúcar no abacate
brincar com melão, goiaba, romã, jabuticaba
ou é o gostinho de infância que faz você feliz?
cuspir sementes de melancia
falar besteira, ficar sem fazer nada
plantar bananeira, ou comer banana amassada?
afinal, o que faz você feliz?

OUTONO

Há um lugar para ser feliz

Além de abril em Paris

Outono, outono no Rio.

ED MOTTA; As Segundas Intenções do Manual Prático. Universal, 2000.

O verão tinha acabado... Graças a Deus! Com suas tempestades avassaladoras, a necessidade de estar em todos os lugares o tempo todo, descer para o litoral, estar com o corpo malhado, sarado, bombado. É o verão havia acabado.

E o suave outono com seu anoitecer mais cedo, o céu com um tom mais dourado, o friozinho ao entardecer; o outono havia se instalado com armas e bagagens no dia a dia. O outono é mais tranqüilo, sem pressa, sem dor. Os frutos do outono são mais doces, o amor é mais macio e parece que curtimos os vícios na hora certa e sem culpa. Aqui vale a citação obrigatória de Verlaine – les sanglots longs de violons de l ´automne¹; que prende na garganta um soluço de tristeza e decepção.

Queria poder viver em comunhão com a estação que agora se inicia. Ser mais leve, ser mais macio – mas o coração é mau! Meu e mau, e guarda dentro dele um demônio que nunca dorme e vive a me enganar.

A vida no outono segue mais devagar e nada tem tanta importância ou vale a pena, e nem nós mesmos temos a sensibilidade para desfrutar desse período do ano. No outono tudo que acontece vem de graça, é lucro. Um lucro que compensa o que perdemos nos anos já vividos. Um lucro que acrescenta um pedaço de paz a essa insensata guerra que é viver.

1. Os longos soluços dos violões do outono. Paul Verlaine; Chanson d'automne

ELA PODERIA TER AJUDADO – Parte II

Ela me deixou. E eu já havia percebido no ar o desejo de fuga. Assim como Papillon no romance de Charrière que contava as ondas do oceano, para saber o momento certo para saltar para sua liberdade; penso eu que ela, talvez, contasse os dias, as horas, minutos, segundos para sua fuga.

Eu já tinha sentido os sinais de que a coisa ia mal – e se eu tivesse sido um pouco mais esperto, eu já deveria ter saído dessa faz tempo. A tragédia iria acontecer um dia a mais dia outro a menos, e a vida em si já é uma tragédia. Viver é um eterno planejar e re-planejar atos, dívidas, dúvidas, pensamentos que no final vão dar em nada, pois as coisas, você sabe, têm uma força própria que não se pode alterar.

Agora fico aqui um pouco mais triste, mas a vida continua, e a vida tem que continuar. Sigo um pouco mais alquebrado, um pouco mais machucado, solitário e com dias de janelas eternamente abertas a um horizonte sem sol. Seguimos em frente como no final do romance de Fitzgerald:

“Gatsby acreditava na luz verde, no futuro orgástico que ano a ano recua a nossa frente. Ele escapara então, mas isso não importava – amanhã correremos mais rápido, estenderemos mais adiante nossos braços...e numa bela manhã...

E assim prosseguimos barcos contra a corrente, arrastados incessantemente em direção ao passado.”¹

Agora já é tarde, ele me deixou realmente, e a noite cai na urbanidade caótica, das cinco horas da tarde de um dia qualquer, na cidade. Carros com passageiros solitários, ônibus lotados com mulheres cheirando a Cândida, metrôs com filas enormes e vagões entupidos, a vida segue.

Luzes incertas acendem-se aqui e lá, e, no seu íntimo, ele sabe que por detrás de cada janela iluminada há um homem solitário segurando em prantos sua alma amargurada.

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1. FITZGERALD, F.Scott (2007) O Grande Gatsby; trad. de Roberto Mugiatti. RJ: Best Bolso.

ELA PODERIA TER AJUDADO

Ela poderia ter ajudado, deveria nem ter ido.

Aquele encontro estava destinado a ser um fracasso. Ele era uma mistura mal acabada de idéias conservadoras e frases clichês de filmes B. E como ele a queria. Ele tentava agradá-la e conquistá-la, mas ela não estava nem aí. Ficava de olho no visor do celular esperando o próximo torpedo.

Ela, uma menina de 20 e poucos anos e tinha outros interesses na vida – Techno, baladas fortíssimas de sábado para domingo, Red Bull, bala e água mineral prá diminuir o calor. Ela tinha uma vida para viver e não queria perder o seu tempo com um loser.

Ela ficava de olho no visor do celular que, em vibra call, brilhava a cada nova mensagem de texto.

Ele era louco por ela e contava histórias de sua vida. Falava coisas como,

No meu tempo...

E dizia cantadas manjadas tipo,

Você é linda! Teu sorriso iluminou a noite! Estou louco por você! E a noite seguia.

Até que acontece a chamada que ela tanto esperava,

Hum hum

Silêncio.

Daqui a dois minutos

Mais silêncio.

Então ´tá, já estou saindo!

Ela cata a bolsa e o moleton, corre para a porta do apartamento, joga um beijo,

Tchau.

Ele tenta argumentar; Quem era? Quem ligou? O que aconteceu?

Mas era tarde demais; ela já estava ligada em outra.

Ela sai de cena para mais uma noite com muito ice na cabeça, trance bate estaca na veia, água mineral sem gás e rapazes parrudos e bonitos para lhe fazer companhia.

Ele fica na sua solitária identidade e na ressonância dos versos de Bandeira:

Não te aprofundes o teu tédio

Não te entregues à mágoa vã

O próprio tempo é bom remédio

Bebe a delícia de cada manhã.¹

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1. BANDEIRA, Manuel in A Sombra das Araucárias; A Cinza das Horas.

HOMEM MARAVILHADO

Alguém um dia me contou ou eu ouvi esta história e meio que não acreditei, sabe como é, né? A palavra dita, aquela que é apenas ouvida e não escrita, essa é mais fácil para o vento levar.

Pois bem, ouvi dizer que as paixões mal resolvidas, inacabadas que ficam a nos incomodar como uma ferida exposta ao sol. Essas paixões que não fizeram a passagem e ficam a vagar pelaí como almas desencarnadas e espíritos sem luz, essas paixões transformam-se em estrelas e alçam ao céu.

E também me foi dito que, de quando em quando, nas noites mais escuras da alma, essas paixões caem aqui na Terra como estrelas cadentes e explodem ao tocarem no chão.

Ouvi tudo isso, mas não dei bola, achei que fossem aleivosias. Mas, numa dessas madrugadas errantes em que tudo sai dos eixos para de repente fazer sentido, voltava para casa por uma das marginais quando vi pequenas explosões nas fétidas águas do rio.

Encostei meu carro e olhando as águas do Tietê vi as pequenas explosões de fogo nas imundas águas do rio e maravilhado fiquei a assistir essa chuva de paixões.

REFORMA AGRÁRIA

Decidi evitar as grandes paixões para não maltratar de vez o meu coração que, depois que a minha amada, aquela latifundiária desgraçada, fez uma mal acabada reforma agrária; o meu coração ficou exposto a ataques do MST; grileiras desavisadas e famintas por um pedaço de terra, emoções fortes e um pouco de amor; posseiras destemidas e angustiadas; e aventureiras, essas sim, são perigosas.

Depois de ter sido atacado, mal explorado e vilipendiado; meu coração agora é esse deserto, esse terreno árido de esperança, boas intenções e fé em amores novos. Agora meu coração é essa planície árida e seca; uma cena de Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos. Um solo desprovido de riquezas naturais, terra infértil, sem vida e sem futuro.

Por isso fechei as porteiras, tranquei os bois no pasto e cerquei meu coração com arame farpado. Invasões, nunca mais!

POR AMOR, PURO AMOR

Eu vou te mostrar que no meu criado mudo guardo uma arma de talho, um prego enferrujado, umas manias estranhas. Um Sonho de Valsa esmigalhado, uns papéis à toa, um bilhete de Loteria Federal, um rosário e uma Bíblia aberta num capítulo a esmo – Mat. 7, 8.

Eu vou te mostrar isso prá te impressionar e esperar que você se apaixone loucamente por mim.

E eu vou te contar que o mau cheiro que vem do meu armário, é de uma bailarina russa que assassinei com minhas mãos nuas.

Vou te pegar pelas mãos, te conduzir até a área de serviço e mostrar as manchas de sangue que não saíram com o esfregão e a Cândida. Vou te dizer que já assassinei mais de vinte mulheres por amor, por puro amor, e que mandei escrever o nome de cada uma delas numa tatuagem negra que carrego no meu antebraço. E agora me diz, qual é o seu nome?

Um Beijo Interminável

Sleight of hand and twist of fate
On a bed of nails she makes me wait
And I wait without you


My hands are tied, my body bruised
She got me with
Nothing to win and
Nothing left to lose.¹

WITH OR WTHOUT YOU U2

O que ela queria era o impossível. Era uma tara louca que me surpreendeu e chocou. Eu esperaria qualquer coisa daquela vampira; um par de chifres, uma surra de chibata, rolar sobre cacos de vidro, caminhar sobre carvão em brasa.

Ela poderia ter me pedido qualquer coisa que eu teria de bom grado, aceito e feito. Poderia ter sido uma transa meia boca, uma chave de braço, um passeio de mãos dadas num final de tarde de um outono que não começa nunca. Ou lamber o glacê do bolo de chocolate que havia sujado os seus lábios.

E ela sabia que podia fazer exigências. Ela era poderosa, dona da situação e eu, eu apenas abaixava minha cabeça e comia em sua mão. Mas o que ela queria eu não tinha estrutura para fazer, era algo insano.

Era algo que não estava na linha da vida da minha mão esquerda ou escrito nos astros. Não estava programado no terceiro retorno de Saturno. Que ela me pedisse para jejuar, passar fome, mendigar em cada esquina do centro velho da cidade suja. Que fosse algo desconfortável, estranho, bisonho, bizarro. Que fosse um beijo interminável, isso, isso a ela eu daria, mas eu não tinha fôlego, ou peito, ´peito de remador´, como dizia Vinicius, ´para viver um grande amor´².

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1.Truque de mão e capricho do destino
Em uma cama de espinhos ela faz me esperar
E eu espero... .sem você

Minhas mãos estão amarradas
Meu corpo ferido, ela me tem
Nada para ganhar
E nada mais para perder

2. Moraes, Vinicius (1983) Para Viver Um Grande Amor. RJ: José Olympio.

DESPERTADOR

O tititititititi intermitente e irritante do despertador digital prateado que fica em cima do criado mudo me desperta de um sono sem sonhos, mas justo. Aproximo o display dos meus olhos e lá está o momento eternizado, 5:30. Hora de me levantar e enfrentar o cotidiano, o dia a dia, ônibus lotados, chuva passageira, irritação dos motoristas, infelicidade geral.

O dia ainda está escuro. São Paulo demora a amanhecer. O sol tem preguiça de aparecer, ou não aparece mesmo. São Paulo é uma cidade que não amanhece, que a chuva não avisa que vai cair apenas acontece. E quando acontece, as inundações transtornam ainda mais a cidade e serve de alimento para a mídia carnívora por sensacionalismos.

Cinco minutos se passam e o despertador soa novamente com o irritante tititititititi. Olho a esposa que do meu lado ronca e talvez sonhe. Tateio na escuridão do quarto o criado mudo e acho o punhal com cabo de madrepérola.

Mesmo na escuridão a lâmina brilha. Olho novamente a esposa que dorme e num brusco movimento cravo o punhal no lado esquerdo do meu peito. Forço a lâmina com ambas a mãos enterrando a arma no meu peito. Fecho os olhos e aguardo o sangue escorrer e manchar o lençol azulado. Logo, logo vai a amanhecer.

UM CASO CALIENTE

Ela era Bella Street e eu Jim Faroneday. Tínhamos um caso caliente em Marrocos onde eu era um traficante de armas pé de chinelo, e estava afundado em dívidas, perdendo tudo no jogo.

Uma noite descendo por la calle a altas horas da noite após uns drinques e dançar salsa, eu e Bella ouvimos um barulho atrás de nós. Apertamos o passo e começamos a andar mais rápido, pois sabíamos que estávamos sendo seguidos. Viramos à esquerda, de novo à esquerda, depois à direita, subimos uma viela escura e estreita, descemos na avenida central, entramos à direita, de novo à direita e entramos em um bar de luzes vermelhas, freqüentado por marinheiros com tatuagens e damas suspeitas. Peço um Vermute com gelo e Bella um Gim tônica. Ficamos nesse ambiente estranho e desconfortável por algum tempo até que nossos predadores tenham nos esquecido.

Saímos mais bêbados do que tínhamos entrado. Os saltos do sapato de verniz vermelho de Bella estalam nas pedras da rua. O silêncio é alto demais para poder se escutar alguma coisa.

Caminhamos lentamente e, mais uma vez, percebemos que estamos sendo seguidos por alguém. Corremos pelas ruas da cidade, entramos e saímos de ruas, vielas e becos sem saída na ânsia de escaparmos de nossos captores.

Nos escondemos nas sombras de um beco. Ofegantes e cansados de fugir, já sabemos quem são os nossos perseguidores. São os seguidores de uma seita fanática que venera um deus pagão da ilha de Papua, Nova Guiné. Eles querem acertar contas comigo. Eles não estão longe de nosso esconderijo, escutamos seus passos lentos e decididos na noite escura.

Bella me olha, eu a puxo em minha direção e a beijo com fervor e paixão. Abro minha jaqueta e saco o meu Magnum 44, mas não a tempo de evitar a bala que entra bem no meio da minha testa.

O SENTIDO DAS COISAS

A primeira vez que eu te vi, você dançava feito louca ao som de drum ´n bass numa boate underground perto da rua Augusta. Eu te olhei e o tempo pareceu ir mais lento até parar completamente para eu te observar. O tempo parou; eu te olhei e guardei.

A segunda vez que eu te vi, você estava sentadinha no saguão do aeroporto de Congonhas esperando um vôo. No fluxo ininterrupto de pessoas, o ruído dos alto-falantes, o sobe e desce de aeronaves; através de tudo isso o tempo pareceu de novo retroceder até parar. De novo eu te olhei. Vi seus olhos castanho claro por detrás de enormes óculos escuros estilo Jackie O., o vestido de malha florido agarrado ao teu corpo e o anel que brilhava em um de seus dedos de sua mão esquerda que segurava um livro que você lia séria e compenetrada. De novo eu te olhei e te guardei.

Hoje em dia não te vejo mais em lugar nenhum. Cruzo a metrópole de ponta a ponta – Higienópolis, Centro Velho, Itaim, rua da Consolação, Campo Limpo, Parque Villa Lobos, no lado underground da rua Augusta, Jardins. Vago a cidade como um faminto cão sem dono e sonho. Sonho em mais uma vez poder te ver para que as coisas de novo comecem a fazer sentido.

NÓS QUE AQUI ESTAMOS, CONTINUAMOS.

Não nos lembramos apenas do passado, mas do futuro também. Cinqüenta por cento da memória é dedicada não ao que já aconteceu, mas ao que irá acontecer. Reuniões, aniversários, encontros, todos os compromissos e planos em andamento, todas as esperanças, sonhos e ambições que formam a vida humana – nós nos lembramos do que fizemos e também do que vamos fazer. Apenas o fio do presente é “duro” em todos os aspectos. Passado e futuro são coisas da mente, e uma mente pode ser transformada.

STEVEN HALL (2007) Cabeça Tubarão. SP: Cia das Letras.

Gosto de olhar o céu na noite de 31 de dezembro depois que todos os fogos de artifício foram estourados. Ali na solidão e na imensidão do silêncio, olho a pretidão desse céu que nos protege, e às vezes ameaça. Depois de ter brindado e saudado o ano que chega, bebo um pouco de champanhe que resta na taça e olho as estrelas.

Não sinto ali, isso na minha mais completa ignorância sobre astronomia, o menor sinal de vida. Nem mesmo aqui na terra há um sinal de vida. Não há na rua um mínimo sinal de vida. Olho para o céu, para os pontos de luz que podem ser tanto estrelas como planetas. Escuto o silêncio da madrugada, nem um singelo carro se atreve a cruzar a rua. Teria o ano realmente começado?

O Ano Novo, esse mesmo com maiúsculas, não começa no céu, nas estrelas, na taça de champanhe, nos fogos de artifício. O Ano Novo se inicia mesmo é no coração. O tempo, você bem sabe, é inventado por nós. Ele, o tempo, não passa. Inventamos dias, meses, horas, semanas, anos. O tempo não passa, passamos nós. Por isso o ano termina, por isso ele recomeça, porque nós o inventamos.

Quando o ano se encerra nas areias da praia de Copacabana, na avenida Paulista, em Sidnei na Austrália, no Times Square em Nova York, no rio Tâmisa em Londres; há uma explosão de fogos de artifício, para que nós que aqui estamos e continuamos, assinalemos o início do novo ano.

Nós que aqui estamos e que até aqui chegamos. Nós que estamos vivos, continuamos a jornada.

Este texto foi escrito depois da leitura da bigrafia do escritor norte-americano Jack Kerouac. è uma crônica prá baixo e emio down. A vida às vezes se mostra ssim.

Abcs e bjs

Alex

Compreendi de repente que eu não tinha nenhum lugar para ir. Mas foi ao longo da viagem que se produziu a grande mudança da minha vida, o que eu chamei de ‘grande meia volta’ ... , passando de um gosto juvenil e corajoso pela aventura a uma náusea completa no que diz respeito à experiência do mundo em sentido amplo.

KEROUAC, Jack (2005) Viajante Solitário. Porto Alegre: L&PM.

Pode-se dizer muitas coisas sobre o escritor franco-canadense Jack Kerouac, um dos ícones da literatura norte-americana. Alcoólatra, toxicômano e um eterno solitário; ele, junto com o poeta Allen Ginsberg, foi um dos expoentes que no início dos anos 50 lançaram o movimento beat – a chamada beat generation.

Kerouac e seu amigo Neal Cassidy cruzaram os Estados Unidos em 1947, na primeira série de viagens que prosseguiram ininterruptamente por três anos. O relato dessas viagens se transformou em um livro chamado On The Road – Pé na Estrada. Reza a lenda que Kerouac escreveu o livro em três meses em uma bobina de papel, pois não queria interromper o fluxo de seus pensamentos, em 1951, mas o livro somente seria publicado seis anos depois em 1957, ou seja dez anos depois de sua aventura com Cassidy pela América.

Durante esse período em que viajou pelos Estados Unidos, Kerouac fez de tudo:

Passei este período escrevendo tudo que me vinha a cabeça, pulando em trens de carga e pedindo carona, trabalhando como guarda-freios em estradas de ferro, lavando pratos e limpando o convés de navios mercantes, servindo de vigia de incêndio para o governo, fora centenas de serviços variados.

Jack Kerouac in Os Escritores 2 – As Históricas Entrevistas da Paris Review (1989); seleção Marcos Maffei. São Paulo: Cia das Letras.

Com a publicação de On The Road em 1957, Kerouac conquista a fama imediata, mas o Kerouac que cruzou o país com Cassidy em 1947, não é o mesmo que em 1957 tem o seu livro publicado. Esse vácuo de dez anos entre a experiência vivida e a publicação do livro fez diferença,

pois há desejos que não podem esperar porque senão esfriam. No poema de Gonzaga para Marília de Dirceu ele diz; “As glórias que vêm tarde já vêm frias”.

Estamos sempre desejando viver o que já aconteceu, ou o que nunca irá acontecer, pois o tempo, o momentum já se passaram. Porém, como meninos que aguardam a menina mais bonita da rua dar bola para eles, continuamos a insistir e acreditar no que um dia foi um plano, um sonho, uma estratégia mirabolante que faça com que a vida de repente comece a dar certo e a tristeza vá embora por completo.

Já passei dos quarenta anos e não tenho mais nenhuma carta na manga do paletó, ou um novo coelho para tirar da cartola. O que eu desejava dez anos, vinte anos atrás já aconteceu, agora é sobreviver seja lá como for, ou como der. Estou na minha ‘grande meia volta’, como diz Kerouac. Perdi o gosto e o frescor da juventude por novas aventuras e desafios. Não sou o mesmo de dez anos atrás. Sigo a estrada sem muitos desejos ou vontades; sem muitas alegrias ou esperanças e sem nenhum lugar para ir.

Por isso digo, agarre com unhas e dentes o que você tem no momento, porque não há muita coisa lá fora. Não pense que existem um milhão de oportunidades, porque não há. Grude com força naquilo que você tem no momento, talvez não haja mais nada se você jogar tudo para o ar.

Talvez um dia eu volte a ter aquelas ganas de conquistar o mundo e não ligar para o que poderá acontecer, mas você sabe a vida é cheia de truques e, nunca se sabe o que poderá acontecer com o restante desse viagem que é a vida. Pode ser que uma centelha de gozo brilhe no meu plexo solar, e eu adquira novamente o furor juvenil; ou também pode ser que a brasa acabe de vez e, somente restem as cinzas para o vento levar.

Filosofia:

SONETO SIMÉTRICO

Será o pavão vermelho? Ora, direis,

este raio não cai mais de uma vez

no mesmo lugar – é a prova dos nove,

é Götterfunken, uma coisa arisca

só dada (e olhe lá!) a quem é jovem

que ainda guarda em si uma faísca.

Porém, passado o mezzo del camin,

às vezes uma luz fraquinha pisca,

e é como se sumisse uma neblina

que há muito esconde uma paisagem bela.

É ela, sim – pensa você – ali, na

sua frente. Ou talvez a parte dela

que ainda lhe cabe. Encha os pulmões de ar.

Goze esse instante. Ele não vai durar.

PAULO HENRIQUES BRITTO (2007) Tarde. São Paulo.Cia das Letras.